A mulher que matou os peixes

by Diário do Vale

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O conto “A Mulher que Matou os Peixes”, de Clarice Lispector, starta inúmeras interpretações a partir do momento que uma mãe zelosa esquece de alimentar os dois peixes deixados pelo filho sob os seus cuidados.

Quantas vezes deixamos morrer mais que peixes no nosso aquário interior? Esses peixes inocentes e agora mortos, nos leva a perceber ao longo de nossa vida que já matamos inúmeras amizades, sonhos e desejos de toda a ordem. Temos aí o mundo real se aproximando do mundo subjetivo, coisas que só a arte é capaz de promover.

No dia a dia matamos sem perceber ou até mesmo querer, mais que formigas, aranhas e baratas; matamos de maneira impiedosa amores, relacionamentos que pareciam duradouros e imortais, matamos em nosso interior nossos adoráveis peixes ornamentais.

Matar e carregar a culpa, a certeza do erro, da inércia, do medo de voltar atrás e reparar o fato, deixando escapar a oportunidade quase única de ressuscitar tudo o que jazia em estado de total desgaste. Será que somos capazes de operar este “milagre”?

Nós humanos somos indiscutivelmente ossos duros de roer, dar a mão a palmatória, como se dizia nossos avós, jamais! Somos levados a manter o erro, os peixes mortos. Pedir desculpas e aparar as arestas é algo muitas vezes dolorido e por que não dizer vergonhoso.

Clarice Lispector foi uma escritora singular, ela nos legou livros adoráveis como “A Hora da Estrela”, “A Paixão Segundo G.H.” ou ainda “Água Viva”. Sabia como poucas escritoras dizer nas entrelinhas verdades inteiras, nunca nada de meias palavras. Basta ler seus livros e descobrir verdadeiros mananciais de experiência, instantes que se não vivemos ainda, certamente iremos viver um dia, um inequívoco manual de momentos que a própria Clarice parece ter vivido. Pena que morreu tão nova, aos 57 anos, e, com isso deixou muito por nos contar.

Seu conto quase pueril, talvez um dos mais “infantis” de sua lavra, carrega a simplicidade do fato, algo que a primeira vista não damos a merecida atenção, até transportarmos as ações da mulher distraída para o nosso universo. A mulher que se esqueceu de alimentar os peixes vermelhinhos do filho e acaba por encontrá-los mortos. Fica triste, nervosa, perturbada com o erro, a falha quase imperdoável, uma distração tola que acaba por sentenciar dois inocentes vertebrados.

E se esses pobres peixinhos, vítimas de uma triste distração, fossem um amor nosso de anos, que por descuido não fosse alimentado, por ser este algo “antigo”? Quantas e quantas vezes nos esquecemos de alimentá-lo, de dar a ele a palavra certa, o afago, o olhar de carinho, a mão de cuidado, o beijo do desejo? Quantas vezes deixamos de prestar atenção na água do aquário e quando percebemos ela já está cheia de limo e totalmente sem oxigênio?

Matar um ou dois peixes, é um crime!? Matar um cardume de relacionamentos é a total falta de amor e piedade para com o que nos cerca, falta de percepção para nós que somos seres gregários!

Estou relendo depois de algumas décadas da primeira leitura, o livro “O menino do dedo verde”, obra escrita pelo escritor francês Maurice Druon. No livro, o menino Tistu com seu dedo encantado, tudo o que toca vira beleza se transformando em verde, em vida e alegria. Sua bondade nascida do toque dos seus dedos, significa perpetuar o amor por onde passa, um menino mágico que tem o dom de levar cor e a vida pela sua história, algo bem diferente daquela mulher que mesmo involuntariamente deixou dois peixinhos de aquário morrer por falta de alimentação.

Sensibilidade

O que falta muitas vezes em nós é saber traduzir, interpretar o outro, não necessariamente decifrar, mas sim, ter a devida sensibilidade para trazer para perto aquele a quem gostamos de verdade. Manter-se a distância desse aquário, apenas como expectadores é algo frio, não nos permite ter um legado afetivo para o futuro, mas sim algo curto, apenas com começo e fim, sem a possibilidade de viver o meio, o recheio. Se retirarmos da relação o prazer da troca, a permuta deliciosa que essa ação pode trazer, o que sobrará?

Sempre percebi nos meus anos de trabalho e vivência ao lado dos livros, que estes são verdadeiros manuais para nos ajudar a chegarmos ao equilíbrio, a nos encontrarmos de fato conosco e com o outro.

Seja nos livros de Clarice, Druon, nos atuais e incensados livros de padres e pastores ou ainda nos compêndios de autoajuda de renomados guros e coachings, certamente que algo poderá ser retirado de suas páginas, tudo cuidadosamente analisado para então ser colocado em prática.

Todos nós temos algo a dizer porque sentimos, e, se sentimos, é porque nossa sensibilidade não está estática, ela está em perfeita interatividade com o meio e consequentemente com o outro.

Das páginas de um livro se pode tirar a realidade e a ficção que desejamos. Se a dor, a miséria e a verdade podem ser lidas e sentidas no livro “Quarto de despejo, diário de uma favelada” de Carolina Maria de Jesus, a beleza e a doçura podemos encontrar nas obras de Adélia Prado e de Rubens Alves. Acredite, mesmo diante da mais doce ficção é possível se viver a realidade, e assim transformar tudo em algo a nosso favor.

Os livros são portas sempre abertas que nos permitem visualizar uns cem números de coisas além de suas páginas. Quando fechados, continuam a nos permitir viver sonhos, através da realidade, mesmo sendo crua e mordaz.

Se depois de ler a última página de um livro e ainda estiver de frente para um fauno, uma bruxa, uma princesa ou um castelo, acredite que não é algo surreal ou loucura de leitor voraz. É algo exatamente igual como se você estivesse frente a frente com um celular recém lançado, um homem a pedir esmolas, uma roupa transada, uma guerra, um anel de brilhantes, um casebre abandonado em meio a tantos outros em uma favela ou um jantar a luz de velas.

Tudo pode ser real se pontuado com amor ou dor, só depende de nós e da magia do nosso olhar em querer fazer a melhor transformação de dentro para fora, algo que será em algum momento percebido e retribuído da mesma maneira por aquele que o seu coração abraçou.

 

ARTUR RODRIGUES | [email protected]

 

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