Memórias de um hotel explicam a implosão Blatter-Fifa pelos EUA

by Diário do Vale

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O que há em comum entre músicos como Franz Liszt, Richard Wagner e o nosso ex-presidente da CBF José Maria Marin?
Que relação pode existir entre a instituição do Prêmio Nobel da Paz e a trupe que surrupiou o dinheiro da Fifa?
Só uma: o Hotel Baur au Lac, em Zurique, na Suíça.
Foi onde estava hospedada a delegação de dirigentes da Fifa, aguardando as eleições da entidade, que ocorreriam no dia 29 de maio.
Como se sabe, dois dias antes das eleições, a polícia suíça chegou ao local para prender sete destes dirigentes, entre eles o brasileiro Marin.
Com a precisão de um relojoeiro suíço, exatamente às 6 horas, os policiais foram à portaria, se identificaram e apresentaram o nome dos procurados. O encarregado da portaria pegou o telefone e avisou um por um, nos seguintes termos:
– Só estou ligando para dizer que o senhor deve vir até a porta e abri-la para nós, ou nós vamos ter que arrombá-la.
Ninguém apresentou qualquer resistência. Educadamente, a polícia suíça (sem farda) permitiu que cada um vestisse sua roupa, fizesse as malas e descesse, sem algemas, um a um. Pareciam hóspedes comuns. Policiais de terno ajudavam a carregar os pertences. O carro em que foram colocados era um veículo preto comum, e não uma viatura de polícia.
Ou seja, nada abalou a tranquilidade típica do Hotel Baur au Lac, que em 171 anos de existência viu passar por ali nobres, chefes de estado, cientistas, poetas, músicos e artistas de todos os matizes, em busca do requinte neoclássico de sua construção e da tranquilidade que se desenha até na vista para o Lago de Zurique e os alpes.
O hotel só não tinha visto ainda uma corja de figurões sendo presa por integrar uma quadrilha internacional de uma das maiores entidades paraestatais do mundo: a Fifa.
Mas tão obscuras quanto as ações da quadrilha é o que motivou a entrada dos EUA, através do seu Departamento de Justiça e do FBI, para desbaratar o esquema internacional de corrupção. Foi apenas uma ação cotidiana de combate à corrupção ou esconde interesses maiores?  Por que a operação explodiu às vésperas das eleições da diretoria da entidade?
Na verdade há um interesse geopolítico em jogo na briga das grandes potências mundiais sobre o episódio. Uma guerra sem armas. Um novo tipo de guerra.
Quem pode nos dar detalhes do esquema por trás de tudo?
O próprio Hotel Baur au Lac pode ajudar a explicar muitas coisas sobre o episódio. Como testemunha de 171 anos de existência, recebendo alguns dos maiores vultos da história, ele viu e ouviu muita coisa.
E ouviu inclusive a primeira apresentação da ópera “A Valquíria”, de Wagner. Um momento inesquecível mas que, curiosamente, também pode ajudar a explicar a “Operação Fifa” do FBI.

A princesa, o músico e a origem
da operação que abalou a Fifa

Em 22 de outubro de 1856 o músico austríaco Franz Liszt, autor das populares Rapsódias Húngaras, decidiu comemorar seu aniversário de 45 anos no Hotel Baur au Lac. Entre os convidados, um grande amigo de Liszt: o também compositor Richard Wagner (que mais tarde se casaria com a filha de Liszt).
O alemão Wagner, em março daquele ano, havia concluído as partituras de sua obra mais famosa: “Die Walküria” (A Valquíria). Neste aniversário de Liszt, seu presente foi fazer a primeira apresentação desta ópera (exibiu a parte I).
Ninguém menos que o próprio Wagner cantou a ópera, acompanhado de uma jovem soprano. No piano, Liszt.
Além de acompanhar o musical no piano, Liszt estava muito bem acompanhado.  Sempre ao seu lado estava a princesa Carolina Elizabeth Sayn-Wittgenstein. Eles se amavam. O que seria maravilhoso, não fosse um pequeno detalhe: Carolina era casada com o príncipe Nicolaus Sayn-Wittgenstein, influente oficial do poderoso czar russo Alexandre II.
Carolina era filha de um rico proprietário de terras em uma pequena cidade próxima a Kiev, onde hoje é a Ucrânia. Seu conto de fadas começou quando, ainda moça, o influente e belo príncipe Nicolaus pediu sua mão em casamento. A princípio relutou, mas depois cedeu aos conselhos do pai. Casou-se aos 17 anos e aos 18 teve uma filha, Marie.
O casamento não era ruim. Seu príncipe era um homem educado e inteligente. Mas Carolina era uma mente inquieta, o que mais tarde faria dela uma jornalista, ensaísta e biógrafa. E quando conheceu um gênio, Liszt, a paixão explodiu.  Já no primeiro contato estavam apaixonados. Um caso real de amor à primeira vista.
Carolina tentou de todas as formas que o Vaticano anulasse seu casamento anterior, para poder se casar com Liszt. O Vaticano concedeu. Mas voltou atrás por pressão do czar russo Alexandre II, impedindo seu casamento. Carolina e Liszt viveram juntos por mais de 40 anos sem que pudessem efetivar o casamento.
O czar foi ainda mais longe. Confiscou todas as terras herdadas por Carolina, na Ucrânia, que na época estava sob o domínio do Império Russo.
A influência russa na Ucrânia, na época, criou a história da princesa triste que desejava ser só uma mulher feliz.
Hoje esta mesma influência pode estar por trás da operação que acabou com a felicidade da quadrilha que liderava a corrupção na Fifa.

Rússia na Crimeia nunca
acaba com um final feliz

A apresentação de “A Valquíria” por Wagner no Hotel Baur au Lac ocorreu em um ano muito especial para a Europa. Poucos meses antes, em março de 1856, havia sido assinado o Tratado de Paris, que pôs fim à Guerra da Crimeia.
Esta guerra começou três anos antes, quando a Rússia decidiu ocupar a Crimeia, que pertencia à Turquia. França e Inglaterra (e depois Sardenha, atual Itália) se uniram contra os russos. Mais de meio milhão de pessoas morreram, até que a Rússia, derrotada, assinou o Tratado de Paris e se retirou da Crimeia.
O apoio do Reino de Sardenha foi retribuído pela França. Três anos depois, Napoleão III apoiou Sardenha na guerra contra a Áustria, facilmente vencida. Com isso, Sardenha conquistou toda a região da Lombardia, dando início ao nascimento da Itália moderna.
O acordo final que selou a paz  e fez nascer a Itália foi assinado em 10 de novembro de 1859, no Hotel Baur au Lac, onde ambas as delegações estavam reunidas.
Da Rússia até França, os europeus sempre brigaram entre si. Tantas guerras levaram uma mulher humanista, pacifista e genial, a baronesa Bertha von Suttner, a, em 1895, se sentar à mesa com o milionário cientista e industrial Alfred Nobel (a quem já conhecia) e propor que ele criasse o Prêmio Nobel da Paz.
Estava criado ali o primeiro e principal prêmio pacifista do mundo. Na mesa do restaurante do Hotel Baur au Lac.
O prêmio deu certo, mas a paz demorou. Após guerras e mais guerras (incluindo duas mundiais) e várias revoluções, a Europa finalmente vive um período de paz.
Mesmo a Guerra Fria acabou, com o fim da União Soviética e a libertação do domínio russo de países como a Ucrânia da princesa Carolina.
Mas a tensão voltou agora, quando a Rússia decidiu, no ano passado, mais uma vez transformar a Crimeia em seu território, retirando-a da Ucrânia – o que não foi reconhecido pelos países ocidentais e nem pela ONU.
Os principais contendores são os mesmos brigões da Guerra da Crimeia do Século XIX: Rússia de um lado; países europeus como França, Inglaterra e Itália de outro.
A diferença é que entrou em campo um novo contendor: os Estados Unidos da América, maior potência da atualidade em todos os sentidos.
Outra diferença é que a guerra atual envolve muito mais política e opinião pública do que sangue.
Os campos de batalha não são mais as cidades fortificadas da Crimeia no Mar Negro.
São intangíveis.
E um dos principais campos de batalha passou a ser a Fifa.
A arma, o futebol.

Na guerra das provocações,
a Fifa entrou com as suas

Em outubro do ano passado, no auge da crise da Crimeia, a Fifa fez uma festa de gala no Teatro Bolshoi, em Moscou, para lançar o logotipo da Copa que a Rússia vai sediar em 2018.
De repente, no enorme telão de fundo, surge na imagem da TV Fifa o globo terrestre estilizado com o mapa da Rússia… com a Crimeia anexada.
Diante da repercussão mundial, a Fifa se desculpou, disse que foi uma falha – mas ninguém engoliu.
Antes a Rússia colocou os clubes de futebol da Crimeia no seu campeonato.
A Fifa lavou as mãos e coube à Uefa (liga europeia) pressionar a Rússia até conseguir um acordo, em janeiro deste ano, para a realização de um campeonato próprio da Crimeia.
O fato é que a Fifa nunca deu muita bola para a opinião nacional de qualquer país. Por uma razão simples: seu poder político supera o da maioria dos países, a ponto de impor mudanças nas leis dos locais que sediam as copas para moldá-las a seu favor.
A Fifa tem mais países integrantes do que a ONU (209 contra 193). E não é só internacional: é supranacional, ou seja, não presta contas a ninguém e nem se subordina a nenhum governo.
Tal sistema foi terra fértil para a corrupção desenfreada.
É provável, porém, que seus chefões e subordinados continuassem nadando no dinheiro da propina se a Fifa não fosse uma poderosa arma política que domina um esporte que gera as maiores audiências televisivas do planeta.
Colocar a Crimeia anexada à Rússia em sua tela de TV foi um erro simbólico. A Fifa entrou na guerra política já há algum tempo. Mesmo com toda a força da Fifa,  este é um campo em que os EUA jogam muito melhor.
E não se importam em cometer qualquer tipo de falta.

EUA entram no jogo
com seu time mais forte

Em março deste ano, 13 senadores americanos enviaram uma carta à Fifa pedindo a retirada da Rússia como sede da Copa do Mundo de 2018, em virtude da anexação da Crimeia. E não são senadores do baixo clero. São cardeais dos partidos Democrata e Republicano.
A Fifa, com razão, negou o atendimento ao pedido.
Mas, sejamos sinceros, quando os norte-americanos (que jogam futebol com as mãos e com uma bola oval) começam a se preocupar com o futebol (o dos pés e bola redonda) alguma coisa está por acontecer.
E aconteceu.
Os EUA estenderam os braços do seu Departamento de Justiça até a Suíça. Conseguiram prender, em outro país, cidadãos que não são americanos, com uma ajudazinha de juízes e policiais suíços. Deixaram claro o recado de que, se existe algum poder supranacional, este poder é o da potência americana. E que não se pode fugir dele nem em países considerados neutros, como a Suíça.
Resumindo: o americanos incutiram o terror na turma da Fifa que não foi presa.
Até o presidente eleito, Joseph Blatter, pulou fora do caldeirão e renunciou.
Natalie Nougayrède, jornalista da edição americana do jornal The Guardian, destacou que os EUA utilizaram a técnica que o professor de Harvard Joseph Nye cunhou como “soft power” (poder suave) – a capacidade de obter o seu caminho sem recorrer à força armada, através da influência e persuasão.
Ela lembra o que império Fifa-Blatter foi derrubado sem que se disparasse um tiro.
E o quanto isto é preocupante.
Se os EUA decidirem lançar mão mais vezes deste poder legalista extraterritorial como solução de problemas globais, a coisa pode desandar.
A Rússia, por sinal, protestou contra a ação americana no mesmo dia, classificando-a de “ilegal” e pedindo a Washington que “pare de tentar se constituir como juiz além das suas fronteiras”.
Ninguém deu ouvido aos russos.
No dia seguinte, o próprio presidente Putin declarou, na TV, que os EUA estavam agindo para tirar a copa da Rússia.
Aí é melhor dar ouvidos aos russos.
Na última semana, o auditor da Fifa, Domênico Scala, disse que a escolha da Rússia e do Catar, para as copas de 2018 e 2022, pode ser revogada se ficar provado que correu propina para os bolsos de alguém.
O cerco se fecha.
Mas o bar do Hotel Baur au Lac continua aberto.

Fifa colocou a Crimeia anexada à Rússia em mapa que exibiu em solenidade em Moscou

Fifa colocou a Crimeia anexada à Rússia em mapa que exibiu em solenidade em Moscou

Hotel Baur au Lac, onde foi presa a quadrilha que operava o esquema de corrupção na Fifa

Hotel Baur au Lac, onde foi presa a quadrilha que operava o esquema de corrupção na Fifa

Aurélio Paiva| [email protected]

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12 comments

Carlos Cruz 18 de junho de 2015, 20:57h - 20:57

O que você não falou foi que a Ucrânia sofreu um golpe em sua democracia e seu atual presidente é abertamente simpático ao nazismo e que o avião derrubado na Ucrânia e alardeado pelos quatro cantos do planeta com feito da Rússia, foi, comprovadamente, obra do governo nazifascista da Ucrânia. E quanto a Crimeia, historicamente sempre teve ligada a Rússia e sua anexação se deu após um plebiscito em que 96,8% de seus habitantes optaram pela Rússia. Quanto aos EUA, são movidos pelas mesmas do antigo Império Romano: se impor pela força e dominar pela guerra. Mas sabemos o que aconteceu com os romanos e com certeza o mesmo acontecerá com os EUA, porém, num espaço de tempo muito menor.

elisio bezerra 17 de junho de 2015, 14:17h - 14:17

Uma excelente matéria. Quem curte futebol ja tinha essa ideia, pois o nosso esclarecido senador Romário há muito vem atacando os desmandos na e da Fifa e CBF. Faltavam esses ilustrativos detalhes que talvez só Agatha Cristiie poderia nos revelar algo positivo nessa tão grotesca trama, cuja realidade não envolve nenhuma autoridade de fato por ali citada e com frequência marcada no glamoroso Hotel, mas só os gatunos da perversa Fifa se ferrariam como de fato se ferraram.

Joanna 16 de junho de 2015, 12:32h - 12:32

Tem gente morrendo na Ucrânia e há uma ebulição no oriente médio. Unidndo isso tudo à crise econômica mundial, temos um cenário perigoso. Ou não?

Rodrigo 16 de junho de 2015, 09:36h - 09:36

Que história interessante. Parabéns!

Cantinflas 15 de junho de 2015, 15:42h - 15:42

Só que Franz List não era austríaco, mas sim húngaro.

Pietro 16 de junho de 2015, 09:14h - 09:14

Só que o hotel é Baur “au” Lac.

Al Fatah 16 de junho de 2015, 10:48h - 10:48

A Hungria fazia parte da Áustria, assim como Croácia, parte do Norte da Itália (região do Mar Adriático) e outras regiões da Europa Central e do Leste. Era o Império Austro-Húngaro, uma das grandes potências mundiais desde meados do século XIX até a WW1…

Raphael 14 de junho de 2015, 19:40h - 19:40

Ótima matéria!

Sônia Paes 16 de junho de 2015, 13:06h - 13:06

Pietro, já corrigimos o erro. O nome do hotel está correto agora.
Muito obrigada e tenha uma boa tarde.

Leandro 14 de junho de 2015, 17:36h - 17:36

Interessante. Não sabia da metade disso.

Mariana 14 de junho de 2015, 17:19h - 17:19

Genial e pitoresco. Dá uma boa novela.

Al Fatah 14 de junho de 2015, 09:24h - 09:24

Faz todo o sentido. Fiquei meio intrigado tentando entender o que diabos os EUA tinham a ver com os escândalos de corrupção na FIFA desde que não tinha qualquer interesse específico seu ali, mas pode sim ser um tapa de luva bem pesado na cara de Putin tendo em vista os acontecimentos recentes na Criméia…

Perder uma Copa seria um duro golpe, um castigo, mas Putin é esperto e já manjou a jogada. Mais do que um adversário forte, ele é astuto e perigoso, não deve ser subestimado. Vale lembrar que a Rússia perdeu aquela guerra, perdeu outra para o Japão mais tarde e depois, eventualmente, dominou não só a Criméia como também outros países e territórios, saindo fortalecida…

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