No metrô

by Diário do Vale

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Era uma cena que eu não conseguia decifrar completamente.

O filho dava pequenos chutes na canela do pai agachado ao lado da porta do metrô. Eram chutinhos curtos, lentos e compassados, uma espécie de violência carinhosa, ou carinho violento, algo corriqueiro naquela relação, a julgar pela cara de paisagem do pai.

O menino era uma miniatura daquele homem, a mesma pele morena, o rosto comprido, os olhos de um castanho levemente esverdeados, traços duros e másculos, exceto pelo nariz fino, levemente arrebitado, tão sofisticado que não parecia pertencer às propriedades genéticas daquela família.

As marcas da dureza eram muito evidentes no corpo do pai. A pele castigada do sol, a barba mal feita, uma cicatriz feia cortando perpendicularmente um pedaço de sua bochecha direita, rugas que pareciam prematuras para o seu rosto ainda jovem. Os braços magros, com veias saltadas e músculos marcados. Músculos sem a plasticidade de quem faz academia. Músculos de quem sofre, de quem carrega a vida no muque, feito tijolo e cimento de todo dia.

O trem parou numa estação, entraram e saíram pessoas. A mãe, feito cão farejador, despertou de seu transe melancólico, cravando os olhos na menina que acabara de entrar.

Saia curta, mini blusa colorida, pernas rijas e claras na transição das idades, cabelos castanhos claros charmosamente derramados sobre seu rosto bem formado, os olhos vidrados no celular, e restos de purpurina no seu rosto ainda angelical. Resíduos dos primeiros blocos de carnaval daquele verão.

A atmosfera naquele vagão ganhara outra densidade, no chacoalhar fumegante dos pensamentos.

O menino não chutava mais o pai, e sentara nas suas pernas, como que para não desabar no chão, completamente hipnotizado. Olhava aquelas purpurinas como se fossem grânulos de brigadeiro salpicados no sorvete de creme. Ainda não tinha idade para voos mais altos, mas parecia estar pronto para atravessar o rio cheio de jacarés que os garotos cruzam antes de virarem rapazes. Olhava aquela menina como quem deseja ingresso para uma festa que ainda não foi convidado.

O pai via as purpurinas como quem enxerga grânulos brilhantes de sal na picanha mal passada. Seus olhos esverdeados ganharam um brilho que parecia impossível na opacidade de poucos minutos atrás. Olhava aquela menina como quem se despede de um porto que o barco lentamente vai deixando pra trás.

Havia uma tensão no olhar da mãe, que via naquela menina apenas a representação do que nunca fora nem jamais seria.

Era possível cortar o ar com uma faca.

Pai, filho e mãe em comunhão profunda com aquela menina que alheia a tudo, continuava a curtir fotos no Instagram.

Não era a menina, era cada um daqueles três personagens em contato com o âmago mais profundo de suas vidas, seus limites, suas impossibilidades.

Três estações depois a menina saiu sem olhar pra ninguém, tal qual como entrou.

A mãe voltou a olhar pro nada. O filho voltou a dar pequenos chutes no pai, que agora tinha os olhos verdes ainda mais opacos e sem vida do que antes. Um olhar para o imenso nada, com cores de cotidiano, com cheiro de metrô lotado e jeito de game over.

 

ALEXANDRE CORREA LIMA| [email protected]

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1 comment

sandra 14 de março de 2017, 16:04h - 16:04

Muito bom Alexandre!!! De uma sutileza ímpar!
Também viajei com as personagens!
Parabéns!

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