O cassino dos bancos ganha expressão máxima nas ruas

by Diário do Vale

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O fim do Big Sorte no Sul Fluminense foi efeito colateral de duas operações federais que mostram como os títulos de capitalização viraram uma jogatina aprovada pelo governo

‘O chefe-de-polícia pelo telefone
Mandou me avisar
Que na Carioca tem uma roleta
Para se jogar…’

(Paródia de 1916 do samba “Pelo Telefone”, de Donga)

Desde o final de novembro, não tem mais Big Sorte no Sul Fluminense. Não foi por acaso. Uma denúncia do Ministério Público Federal de Governador Valadares (MG) , em 14 de novembro, conseguiu que a Justiça Federal proibisse a venda de títulos chamados Vale Cap naquela região. Eram títulos que funcionavam nos moldes do Big Sorte, emitidos pela mesma empresa: a Sulacap (Sul América Capitalização S/A).
A Justiça Federal em Minas foi mais longe: ordenou a suspensão de lançamento de quaisquer outros títulos de capitalização pela Sulacap no Brasil.
A decisão varreu o país na medida em que se descobriu que a Sulacap espalhou a jogatina de Norte a Sul.
Acabaram o Bahia Cap, Baixada Cap, Bauru Cap, Kariri Cap, Capital Cap, Litoral Cap, Minas Cap, Nortão Cap, Natal Cap, Paraíba Cap, Piauí Cap, Vale Cap e muitos outros “caps”.
Todos títulos da Sulacap.
Foram embora também Trimania, Agromania, Axé da Sorte, Bahia da Sorte e… o Big Sorte.
Também da Sulacap.
A denúncia é de que, por trás da fachada de títulos de capitalização, na verdade funcionava uma jogatina nas ruas.
Dias antes, em 11 de novembro, o caldo já entornara em Pernambuco, onde a Polícia Federal deflagrou a Operação Trevo e prendeu vários envolvidos, além de apreender vários documentos, do esquema de vendas dos títulos Piauí Cap e Pernambuco da Sorte… da Sulacap, claro.
A Justiça Federal de Pernambuco fez o mesmo que a de Minas: suspendeu a emissão e comercialização dos títulos da Sulacap em todo o país.

O investimento que virou loteria

Títulos de capitalização funcionam assim: você adquire o título (à vista ou parcelado) e, após determinado período (um ano por exemplo) resgata parte do dinheiro aplicado. De 50% a 100%, em tese, dependendo do título. E concorre a sorteios, normalmente em dinheiro.
Nos títulos da Sulacap o comprador concorria a prêmios, mas cedia o dinheiro a ser resgatado para uma instituição sem fins lucrativos. No caso do Big Sorte, sediado em Volta Redonda, este dinheiro ia para a Cruz Vermelha do Estado do Rio.
O que o Ministério Público Federal em Pernambuco e em Minas concluíram é que os títulos de capitalização nada mais eram que uma loteria disfarçada. O foco jamais foi a capitalização do comprador (que inclusive cedia o direito de resgate do dinheiro), mas sim o jogo, o sorteio de prêmios em si – de TVs a automóveis.
Mais: em Pernambuco o grupo Pernambuco da Sorte teria envolvimento com máquinas caça-níqueis e o jogo do bicho.
Neste caso, os bicheiros pernambucanos devem ter ficados surpresos: foram reprimidos, pela primeira vez, por fazerem as coisas exatamente dentro das regras que o governo estabeleceu.

 O governo criou a jogatina

Foi o governo, através da Susep (Superintendência de Seguros Privados), quem permitiu, incentivou e concebeu o modelo que transformou em jogatina os títulos de capitalização.
Por exemplo, se os donos dos títulos os resgatassem (como concebido em lei) nenhum esquema teria estrutura para pagar individualmente as dezenas ou centenas de milhares de compradores dos títulos.
Aí entrou o governo: a Susep autorizou que os títulos fossem compulsoriamente cedidos a uma entidade sem fins lucrativos.
Abriu a porteira.
O bom negócio só poderia melhorar se a Sulacap, por exemplo, e as empresas que comercializam os títulos se livrassem de mais algumas despesas.
Qual a maior despesa? A publicidade. Carros de som, anúncios em jornais, rádios, TV, panfletos e transmissão ao vivo do sorteio custam dinheiro.
A Susep resolveu a questão: a entidade sem fins lucrativos, beneficiária do resgate, poderia financiar toda a publicidade.
Pronto. Não faltava mais nada.
A turma do bicho em Pernambuco, por exemplo, descobriu que atuar dentro das normas que o governo estabelece para um banco é, no Brasil, um negócio muito melhor do que o jogo em que vale o escrito ou máquinas caça-níqueis clandestinas.
Operações de bancos oficiais são extremamente mais lucrativas que a banca do bicho.
Depois que o Ministério Público Federal e a Justiça Federal entornaram o leite da jogatina nas ruas, a Susep, em 23 de dezembro, baixou uma circular proibindo que a entidade beneficiária da cessão de direito “participe de qualquer custo relativo à realização dos sorteios”.
Ou seja, a instituição sem fins lucrativos não pode mais financiar a publicidade.
Mas o jogo continua, agora nos cassinos das agências bancárias.

 O discreto cassino dos bancos

O problema da Sulacap e seus aliados é que eles escancararam, em público, e levaram ao extremo a jogatina que é praticada por todos os bancos do país sob a fachada de “títulos de capitalização”.
Em tese, era para um título de capitalização funcionar como um investimento, em que o sorteio seria apenas mais um atrativo.
Mas ele não é investimento. Investimento com resultado pré-fixado supõe, no mínimo, a devolução do dinheiro aplicado corrigido pela inflação.
No caso dos títulos de capitalização você recebe, quase sempre, menos do que aplicou.
O título que você comprou se divide em três cotas: Cota de sorteio, Cota de Carregamento e Cota de Capitalização.
A Cota de Sorteio tem como finalidade custear os prêmios.
A Cota de Carregamento visa cobrir os custos de comercialização e administração e, claro, o gordo lucro dos bancos.
A Cota de Capitalização é o que você vai voltar para você, normalmente corrigido  pelo valor da poupança.
E, acredite, você vai perder dinheiro.
Normalmente os bancos cobram cerca de 18% a 19% de Cota de Carregamento.
Isto em uma operação quase totalmente informatizada, de poucas despesas.
Em comparação: os cassinos de Las Vegas levam cerca de 5% sobre as apostas na roleta, 6% no jogo de dados e 2% a 6% no blackjack.  Caça-níqueis ficam entre 5% a 8%.
Ou seja, com um terço do percentual da tal cota, eles mantêm máquinas, equipamentos, salões luxuosos e empregos a rodo.
E lá você ainda se diverte.

Pagando a conta do cassino

Você comprou um título de capitalização de pagamento único (uma só vez) por R$ 100,00 para resgatá-lo daqui a um ano.
Normalmente o banco cobra cerca de 19% de Cota de Carregamento.
Supondo que ele destine 11% para sorteio de prêmios,  no fim de um ano você vai poder resgatar o valor de R$ 70,00 corrigidos, que dá R$ 75,06 (com base os últimos 12 meses).
Se tivesse deixado o dinheiro na poupança seriam R$ 107,23.
E se você fez um daqueles planos de pagar R$ 100,00 por 24 meses e, depois do terceiro pagamento, a grana encurtou e você desistiu?
Sabe quanto vai receber de volta dos R$ 300,00 que investiu?
R$ 30,00.
É a punição por sair do cassino antes do tempo que ele determina.
Quer sair do jogo?
O cassino vai confiscar 90% das fichas que você comprou. Ficam 10% para o táxi. O governo dá cobertura.
A Máfia, quando fundou Vegas, jamais bolou algo parecido.

Tabelas com os percentuais mínimos que o banco pode devolver para você (corrigidos) nos investimentos em título de capitalização

Nos títulos com Pagamento Único (PU), a Cota de Capitalização mínima (o que você vai receber de volta corrigido pela poupança) varia de acordo com o prazo de vigência, segundo a tabela abaixo:

tabela 1

Já nos títulos com pagamentos mensais (PM) ou pagamentos periódicos (PP), os percentuais destinados à formação da provisão matemática (o que você vai receber de volta corrigido)  deverão respeitar os seguintes valores mínimos:

tabela 2

 Pegando dinheiro com o agiota

Um outro modelo de título de capitalização adotado pelos bancos prevê que você vai receber todo o seu dinheiro de volta. Mas só depois de quatro ou cinco anos.
O economista Samy Dana, professor da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP) mostrou, em um site nacional, o exemplo de dois casos concretos.
Em um banco a aplicação era de 720,00 e depois de 4 anos você recebia exatamente os R$ 720,00.
No outro a aplicação era de R$ 1.200 e você recebia os mesmos R$ 1.200.
Sem correção nem nada.
Aplicada a inflação, você perdeu muito dinheiro.
Aí vai uma curiosidade:
Se o banco lhe emprestasse os mesmos R$ 720,00 do primeiro exemplo, a juros de 4% ao mês, depois de quatro anos você teria que pagar a ele R$ 4.730,78.
No exemplo dos R$ 1.200,00 você teria que pagar, após cinco anos, R$ 12.623,55.
Ou seja, o mesmo banco que depois de cinco anos devolve o dinheiro ao cliente sem juros e nem mesmo correção em um investimento, cobra-lhe 956% de juros no mesmo período.
Como bem declarou o mais influente jornal americano, The New York Times:
“Os juros no Brasil fariam um agiota americano sentir vergonha”.

 Quando o agiota é dono do cassino

Prosseguindo na comparação com Las Vegas, imagine um cidadão americano tomando dinheiro emprestado junto ao agiota.
Além de cobrar a maior taxa de juros já vista por um americano, o agiota diz o seguinte:
– Ok, agora é o seguinte: você vai pegar uma parte deste dinheiro, nem que seja 5% ou 10%, e gastar ali no meu cassino.
– Onde? Na roleta?
– Não. Você vai entregar o dinheiro para o gerente. E concorrer a um prêmio disputando com outras 500 mil pessoas. Daqui a doze meses eu te devolvo a metade da grana.
Seria muito ineditismo mesmo para Vegas: um agiota, dono de um cassino que explora os clientes, praticando extorsão (chamada, no Brasil, de venda casada).
Se na jogatina da Sulacap o atrativo eram os prêmios (a Cota de Prêmios passava de 30%, o triplo do costumeiro), na banca bilionária a coisa funciona na pressão.
Convenhamos: ninguém sai de casa dizendo que vai investir em um negócio em que vai perder dinheiro.
Os títulos de capitalização viraram, em muitos casos, moeda de troca para quem precisa de um financiamento.
Às vezes de forma indireta, outras de forma direta, a ordem nos bancos é empurrar estes micos em cima de quem precisa de um empréstimo ou outro serviço.
Esta venda casada já foi repetidamente denunciada. E continua.
Aqui não dá para chamar o FBI.

 E o prêmio?

Claro, gente, tem o prêmio. A banca costuma reservar 6% do que arrecada para fazer a grande premiação.
O já citado economista Samy Dana, da FGV, fez os cálculos das chances de ganhá-lo nos planos que avaliou e concluiu:
– É mais fácil morrer atingido por um raio.

A música da coluna

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Reprodução do jornal “A Noite” de maio de 1913

O trecho da música que abre a coluna possui uma história interessante, contada por Jairo Severiano, do site Música Brasilis.
Em abril de 1913, o chefe-de-polícia do Rio de Janeiro declarou que “o jogo permaneceria liberado até que o governo resolvesse o contrário”. No dia 2 de maio, os repórteres Castellar de Carvalho e Eustáquio Alves, do jornal “A Noite”, instalaram no largo da Carioca uma roleta com o cartaz “Jogo franco! Roleta de 32 números – Só ganha o freguês”.
Logo formou-se ao redor uma multidão, com muita gente querendo “fazer uma fezinha”. Então, a polícia interveio levando a roleta e o cartaz, sob os protestos dos “banqueiros”, que acusavam o delegado de “estar desrespeitando uma determinação de seu próprio chefe”.
A edição do jornal naquele dia foi um sucesso, encerrando a narração do incidente com uma ameaça: “E cá está a roleta para uma nova fezinha se o senhor doutor chefe-de-polícia continuar a fazer declarações tão patetas”.
Passados três anos e alguns meses, em outubro de 1916, numa resposta a uma nova matéria de “A Noite” sobre a jogatina, outro chefe-de-polícia, Aurelino Leal, resolveu “agir”. Enviou ofício aos delegados distritais, ordenando-lhes que reprimissem o jogo nos clubes infratores, só que “antes de qualquer providência” o chefe deveria ser “avisado pelo telefone oficial”.
Coincidindo o fato com o sucesso do lançamento do samba-maxixe “Pelo Telefone”, alguém na redação de “A Noite” criou, como sátira, a famosa paródia:

‘O chefe-de-polícia pelo telefone
Mandou me avisar
Que na Carioca tem uma roleta
Para se jogar…’

 

AURÉLIO PAIVA | [email protected]

 

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2 comments

Silva 29 de março de 2015, 13:39h - 13:39

E a TELE SENA, pq será que continua livre? Querem liberar a maconha, mas liberar o cassino e outros jogos não se fala, pq????

Al Fatah 29 de março de 2015, 12:05h - 12:05

O alerta é válido, mas percebi algumas distorções no texto… A cessão do capital acumulado a um terceiro (entidade sem fins lucrativos) nos bancos eu desconheço, mas se existir algum que a pratique certamente é facultativa, não compulsória (o título não obriga a tal cessão); o rendimento praticamente inexiste nessa modalidade, isso é verdade. Só se recebe o montante acumulado no prazo de capitalização, mas correção pela inflação nem a poupança dá ou dá muito pouco, principalmente em época de juros altos, porque ela é amarrada ao juro fixo e à TR variável, cujo percentual remunerado é ínfimo em relação ao montante, não acompanhando as subidas da taxa Selic acima de 8,5% (já está em 12,5%)…

Os bancos representam a síntese do capitalismo selvagem, acumulando riquezas sem produzi-las e vivendo do lucro extraído das operações de seus clientes, onde pega emprestado de um para emprestar para outro… Outrossim, e diferente desses “Big-Sortes”, jogos do bicho, bingos, etc., os bancos tem regras claras, não tiram nada do cliente além do que foi contratado, ainda que pratiquem juros escorchantes. Não conheço ninguém que tenha perdido dinheiro em banco, excetuando casos que envolvam má-fé e dolo de terceiros, inclusive bancários. O mesmo não pode-se dizer dos jogos clandestinos…

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