Carlinha

Por Diário do Vale

Levou cinco meses apenas para convencê-la a sair para jantar.
Tudo fez para se aproximar da intocada donzela. Dizimou o estoque de flores da cidade. Frequentou mais missas que o Pároco local. Enviou cartas, presentes, ursinhos peludos. Até se abstrair na poesia concreta tentou.
Tanto pelejou que conseguiu dobrar as resistências da tímida Carlinha, a mais bela e recatada garota da cidade.
No boteco onde batia ponto toda quarta feira, não podia conter seu júbilo:
– Ah Carlinha, que docinho de coco. Aquela não é mulher pra namorico não. É pra levar pra casa, casar, e nunca mais largar.
Mais eis que antes de levar para casa e casar, o incansável Adamastor conseguiu levá-la também para a cama.
Tudo correu bem nos primeiros encontros, até o dia em que a moçoila emitiu um grunhido lânguido que mudaria para sempre os rumos daquela relação:
– Me bate !
A mente de Adamastor simplesmente não conseguia processar a informação. Era como se a representação gráfica do som não encontrasse nenhum significado no seu léxico cerebral: mibatchi.
Via os lábios dela se mexendo, mas não processava mais nada. Nada ouvia nem entendia. Um ensurdecedor silêncio se fazia em sua cabeça atordoada. Sim, porque não seria possível que Santa Carlinha estivesse pedindo para apanhar. Certamente seria alguma palavra de origem africana ou alguma gíria nova que ele desconhecia. Mibatchi. Enlouqueceu em silêncio.
Teria mesmo pedido para apanhar ou confundiu o significado daquele grunhido copular?
Levou sua angústia para a mesa do bar.
– Não é possível! A Carlinha pedindo para apanhar?
– Será que você não ouviu errado não?
– Sei lá, já nem sei direito o que ouvi, murmurou o desolado Adamastor.
– Calma aí gente, Carlinha é muito estudiosa. Jamais usaria um pronome átono no início da oração. Se um dia Carlinha descambar para tamanha sem vergonhice dirá “Bata-me”. Ponderou Arruda, tentando aliviar a depressão do colega.
– E quem é que fica fazendo análise sintática no meio do sexo, ô Arruda? Parece que bebe…
Mas foi Juarez quem surgiu com a melhor ideia:
– Olha Adamastor, na próxima vez você dá um semi-tapa, um tapa que não é tapa, meio que resvala a mão numa intensidade maior que o carinho e menor que a violência, pra ver como ela reage…
Não tardou pra oportunidade surgir. Aliás, Carlinha parecia estar gostando bastante da atividade recém descoberta.
Testou o estratagema.
– Isso! Bate. Bate mesmo.
Seu coração gelou. Não era possível que aquele ser possuído por forças endiabradas fosse sua imaculada Carlinha. Como assim? Então ela gostava de apanhar? Mulher séria jamais se prestaria a um papel desavergonhado desses.
– Vai. Bate mais. Bate forte. Bate como homem !
Foi se consolar com os amigos de bar.
– Então a Carlinha gosta mesmo de apanhar?
– É debaixo do mais recatado vestido que se esconde a mais sórdida devassidão –
filosofou Celsinho, já com a voz meio pastosa.
– Não chama a Carlinha de devassa, se não quem vai apanhar é você…
– Calma, calma gente, somos todos amigos…
Nogueira, que antes de virar contador tinha feito um semestre de Psicologia, arriscou um diagnóstico:
– Ela quer apanhar numa tentativa de flagelo pela culpa inconfessa que emerge do pecado da carne.
No fim da madrugada, concluíram que mulher honesta não se prestaria a um papel desses, e que Adamastor deveria dar um basta na situação. Alfredo brindou a saideira citando Nélson Rodrigues:
– A educação sexual só devia ser dada por um veterinário !
No dia seguinte, o casal embarcou em longa discussão. Adamastor disse que mulher honesta não pede para apanhar, no que ela desferiu-lhe um vigoroso tapa, deixando marcado em vermelho rubro toda a sua fúria e indignação de mulher honesta.
E então Adamastor teve uma epifania. Um coquetel incontrolável de dopamina, oxitocina e testosterona invadiu seu sangue. Aquele tapa despertou uma paixão arrebatadora que nem ele mesmo imaginava carregar dentro de seu corpo peludo.
Caindo aos seus pés, Adamastor beijou Carlinha e fizeram amor como se não houvesse amanhã, enquanto ele pedia para que ela batesse nele, forte e sem piedade.
Combinaram que daquele dia em diante resguardariam Carlinha de atos incompatíveis com seu recato e apenas ele apanharia.
Os amigos entreolharam-se boquiabertos quando souberam da bizarra novidade.
Nogueira analisou que esse desejo de apanhar refletia uma sexualidade vacilante e dúbia da personalidade de Adamastor, que mais uma vez não gostou do comentário e quase saíram no tapa.
E naquela mesa de bar, nunca mais se falou da Carlinha.
E então, toda vez que o Adamastor aparecia, esbanjando felicidade e hematomas, o Nogueira ía logo se adiantando:
– E o Flamengo hein? Será que esse ano leva o campeonato?

(Em homenagem ao inimitável Nélson Rodrigues)

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