Por Folhapress
Esta edição de “Carmen” traz não apenas a obra-prima de Mérimée, mas também o conto “Mateo Falcone”. Nas duas, está a obsessão -compartilhada por escritores do século XIX como Goethe e Stendhal- pelas terras mediterrâneas, onde um modo de vida solar e sanguíneo prometia um contraponto ao convencionalismo da Europa setentrional.
Convém começar pelo conto, já que a novela amplifica alguns de seus elementos. A história se passa em Porto-Vecchio, na Córsega, e o personagem Mateo Falcone é o arquétipo do chefe de um clã à margem da abstração das leis modernas, mas com um código de honra mais rigoroso, baseado na palavra.
Após essa sucinta descrição, Mateo sai de cena para que sua casa, guardada pelo filho de dez anos, seja assolada por um fugitivo, que suborna o menino, e depois pelo líder de uma patrulha, que o seduz a revelar o esconderijo do meliante.
A volta do pai, seguida da punição atroz da criança, restaura uma moral viril, impiedosa com a ambiguidade e chocante para o leitor que tolera pequenos delitos à margem de normas feitas justamente para minimizar o inevitável calculismo da sociedade moderna.
O encontro dessas esferas colidentes subjaz em “Carmen” -cujo enredo serviu de base para a ópera homônima de Bizet, que simplificou a estrutura da novela, anulando o contraste da “narrativa dentro da narrativa” de Mérimée.
“Carmen” começa com um anônimo narrador, calcado nas próprias experiências do escritor francês, que conta, em registro sóbrio e erudito, uma expedição arqueológica à Andaluzia. E que, assim como o “autor” das “Crônicas Italianas”, de Stendhal (amigo e interlocutor de Mérimée), dá voz, entre fascinado e atônito, a um nativo daquelas terras exóticas.
Dom José assume então o comando da narrativa, relatando suas vicissitudes de homem honrado que, após conhecer uma “boêmia” (designação para “cigana”) de olhos oblíquos, cai numa vida de crime, clandestinidade e, sobretudo, no desvario do ciúme.
Nos momentos em que se apresenta ao narrador e, depois, ao amante – este realizando retrospectivamente a tentação do primeiro, duplos complementares que são-, Carmen assume uma volubilidade demoníaca e passional, absolutamente fiel a um amor que se dissipa justamente quando este ameaça domesticá-la.
A presente edição agrega notas àquelas do próprio Mérimée (que dão irônico tom antropológico à novela) e um ensaio do tradutor Samuel Titan Jr. no qual, entre outras iluminações, são mapeadas as confluências entre Carmen e outra figura de olhar cigano, oblíquo e dissimulado: a Capitu de “Dom Casmurro”.
Mas é, sobretudo o contraste entre perspectivas diferentes que ressalta do ensaio, fazendo-nos perceber que, sob a fala aparentemente selvagem de dom José (Mérimée maneja magistralmente a diferença entre as vozes do narrador erudito e do narrador bandoleiro) se esconde um “emissário do universo de valores burgueses” -com as consequências trágicas desse encontro.
Carmen
Autor: Prosper Mérimée
Tradução: Samuel Titan Jr.
Editora: editora 34
Preço sugerido R$ 34 (136 págs.)
Avaliação: ótimo