Conto: Varandas e quintais

by Diário do Vale

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Era para ser apenas uma corriqueira caminhada entre o escritório e a padaria para aplacar a fome vespertina, mas acabou virando uma viagem histórica, social e arquitetônica.
Sei lá porque caixas d’água resolvi variar o caminho, o que me fez notar coisas que nunca tinha percebido. Sim, porque a gente não valoriza nem presta atenção no que está acostumado. Depois de um tempo, até Van Gogh vira paisagem. Aposto que a mulher do Pavarotti berrava todo dia pro barbudo parar de cantar a surrada Traviata de Verdi no chuveiro e não duvido que o marido da Angelina Jolie de vez em quando se enfade com o assédio voluptuoso da beiçuda mais adorável que Hollywood já foi capaz de parir. Não é só a renda que é mal distribuída neste iníquo planeta.
Foi por essa variação de rota que prestei atenção nos detalhes daquelas casas antigas ali enfileiradas. Todas com sua sobriedade vetusta, tão típica de uma época. Erguidas nos anos cinquenta eu chuto. Pós-guerra. Confortáveis o suficiente para celebrar um novo tempo, austeras o bastante para não afrontar o trauma recente.
Encantei-me com as generosas varandas de frente para a rua. Sim, porque a rua já foi o espaço maior de convivência pública. Imagino sóbrias senhoras em seus vestidos estampados de viscose, sentadas em cadeiras de madeira e vime, fofocando com suas línguas lépidas trivialidades da vida que passava lenta.
Hábito moribundo, porque as ruas estão cheias de carros nos defumando com monóxido de carbono, e a difusão do crime em escala industrial não permite mais a prática desses ritos sociais entre vizinhos. Hábito quase tão moribundo quanto a prática de cultivar aquelas samambaias ali penduradas, choronas, a segunda coisa mais demodée do mundo, só perdendo para o uso da palavra demodée.
E os muros? Todos baixinhos, batendo na altura do peito. Agora complementados por grades enormes e suas ameaçadoras lanças pontiagudas nas extremidades. Reflexo dos tempos. Saudade dos ladrões de galinhas.
Fico imaginando quem seriam os moradores dessas casas. Sargentos do exército, professoras do primário, relojoeiros? Não tenho como saber, mas web designers e disk jockeys eu tenho certeza que não eram.
Tomado por uma nostalgia incontida, fui até mesmo capaz de apreciar os bizarros detalhes em rococó no canto das paredes, contrastando com as linhas cada vez mais retas das construções contemporâneas. Se hoje em dia está difícil achar um pedreiro competente e que entregue as reformas no prazo, imagine se tivessem que esculpir anjos, dragões, grafismo florais, parangolecos e cabeças de leões nos cantos de toda parede. Minha casa teria virado a igreja da sagrada família de Barcelona e continuaria em construção até o final dos dias dos netos que ainda não tenho.
Não pude deixar de perceber também, escondidos sob pequenas protuberâncias retangulares, metálico-prateadas, os pares de ganchos para armar redes nas varandas. O que aconteceu com elas? Ninguém tem mais rede em casa, somente rede sem fios, wireless. Heresia maior do frenesi contemporâneo. Ninguém mais se balança em redes, o melhor negócio que já inventaram para chacoalhar o ócio.
Essas casas também tinham grandes jardins, quase todos sepultados no cimento sem lápide, em nome de uma garagem maior. Jardim dá muita despesa e trabalho, então melhor abrir espaço para os modernos SUV’s, monstrengos alcoólatras enormes para famílias cada vez menores. Tenho um amigo que tem uma camionete maior que o próprio apertamento. Qualquer dia vai perceber que é melhor dormir com a família dentro do carro pra ter mais conforto e justificar o IPVA mais caro que a escola do filho.
Outro mundo aquele. Vivíamos com mais tempo e mais espaço, confinados na nossa pueril imensidão analógica. Hoje vivemos espremidos, nas ruas, shoppings, estacionamentos e congestionamentos. Vivendo num Espaço-Tempo cada vez mais curto de uma banda cada vez mais larga.
O estoque de casas acabou e logo apareceu uma vitrine de blindex oferecendo tranqueiras chinesas fluorescentes de gosto (nada) duvidoso. O tour involuntário acabara, mas não a fome.
Entrei na padoca e pedi uma média com pão na chapa, como o faria um sisudo senhor saído diretamente do túnel dos anos cinquenta.
Tudo ótimo, não fosse a profusão de hits moderninhos intragáveis sendo cuspidos pelo alto-falante.
Por que raios será que esses DJ’s não tocam mais Lupicínio Rodrigues nem Vicente Celestino?

ALEXANDRE CORREA LIMA |  [email protected]

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2 comments

ÊTA POVINHO 5 de junho de 2015, 23:03h - 23:03

Sempre é bom caminhar por outras direções. Quando passamos a observar as coisas percebemos a riqueza esquecida no tempo.

Gostei da frase: “as ruas estão cheias de carros nos defumando com monóxido de carbono”

Carros, e esses SUV dos RIQUINHOS que além de nos defumar ainda agridem o Meio Ambiente com a gasolina IMPORTADA a Dólar e ALTAMENTE POLUENTE. Dólar esses tão necessários a nossa economia, mas que usam para queimarem com o combustível.

Utilizam esses carrões (talvez financiados a 90 longuíssimos meses para a felicidade geral dos banqueiros) aí precisam trabalhar 48 horas por dia para pagar o financiamento e o IPVA mais caro que a escola do filho e ficam sem tempo para balançar numa rede saboreando uma cerveja com churrasco entre os familiares e amigos.

Esse é o nosso POVINHO RIQUINHO (americanizado e doutrinado a Amebas ou Zumbis para daqui a 02 anos trocar por novo SUV)

ÊTA MESMO! 6 de junho de 2015, 20:28h - 20:28

Acho interessante seu ponto de vista; pena querer arrumar um bode expiatório: “O POVO RIQUINHO”
Quer dizer que “POBRINHO” não compra celular de última geração e financia em 24 meses nas Casas Bahia? Que não trabalha 48h por dia só pra pagar o cartão rener que já faz parte do orçamento??? A diferença entre o RIQUINHO e o POBRINHO é só o tamanho da dívida, pois o tamanho da ALIENAÇÃO é a mesma coisa!

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