Paraty – Embora sejam dois homens à frente da pesquisa, toda busca documental é voltada para a produção religiosa, social e política de mulheres genuinamente paratienses. O resultado do trabalho ilumina cidadãs atemporais que outros estudiosos não se interessaram em evidenciar. A história contada pela dupla curatorial Fernando Palla e Flávio Melo, um paleógrafo e outro historiador, traça paralelos a partir do século 18 mostrando que, se não fossem elas, Paraty estaria esquecida no mapa.
Influenciados pela homenageada da 21ª Flip, Patrícia Galvão, conhecida como Pagu, os estudos iniciados em 2018 por Fernando Palla ganharam vida na exposição ‘As Pagus de Paraty’, do final de 2023 até fevereiro, no Memorial do Paço, um acervo público criado pela Câmara Municipal. “Eu começo a estudar a imperatriz Teresa Cristina e escrevo sobre ela, que é a imperatriz silenciosa e não silenciada. E em 2020 me deparo com documentações inéditas daqui [de Paraty]. Começo a pegar assinaturas de dona Geralda, documentos sobre Maria Generoza, Inês de Souza Caldas; e reparo que estava um pouco demais.”
O trabalho de pesquisa, avançando também pela metodologia oral, conta com 12 mulheres responsáveis por moldar parte da cultura paratiense em muitos segmentos. Da consciência religiosa popular presente em Maria Generoza, passando pelo humanismo de Maria Jácome de Melo, chegando ao pioneirismo nacional com Maria Angélica Ribeiro, formando então a ‘identidade Mariana’ defendida pelos curadores. “Elas são faíscas de exemplo e esperança no pensamento das mulheres de agora. A gente traz, enquanto pesquisadores, o carinho por essa visão de Paraty feminina.”
A luta pelas terras hoje reconhecidas como Quilombo do Campinho parte da trajetória, a princípio, das matriarcas Antonica, Marcelina e Maria Luiza, mulheres negras que fazem história no final do século 19. A representação do jongo que até hoje simboliza a ancestralidade nas danças cantadas é legado de outra mulher escravizada. “Tia Catarina, que chamavam de tia Catirina, nada mais é, no meu conceito em história popular, a criadora do jongo de Paraty”, afirmou Palla. Falando em arte, poucos sabem, mas a primeira peça encenada no Brasil foi produzida pela dramaturga paratiense Maria Angélica Ribeiro, nascida em 1829, autora de mais de 20 peças teatrais e responsável por difundir a dramaturgia nacional.
Os dados reunidos pelos historiadores elencam ainda a participação efetiva de mulheres na política eleitoral daquela cidadezinha em construção. Enquanto 129 operárias morriam em Nova York no ano de 1857, resultando um século depois no Dia Internacional das Mulheres, em Paraty a sociedade elegia para a Câmara a primeira vereadora, Josephina Gibrail, com 468 votos. “Estamos ali em 1936. Estávamos saindo da Primeira Guerra, após a Belle Époque. Enquanto acontecem coisas lá fora, aqui dentro, na nossa casa, tem ela dando a cara a tapa num momento em que recontam os votos dela mais de quatro vezes. Como assim uma mulher, os homens diziam”, relembrou Melo, admirador da história da vereatriz, termo comum à época misturado com ‘imperatriz’.
Fernando Palla também tem sua Pagu paratiense predileta, é Geralda Maria da Silva, chamada de Dona Geralda, a primeira pessoa a ganhar nome de rua ainda em vida. Rua da Dona Geralda, sendo mais exato. Caridosa, parte da fortuna recebida do pai se transformou em ponto turístico hoje: a igreja matriz de Nª Srª dos Remédios. “Ela foi incrível. Uma mulher que não aceita se casar para não ser mandada. Uma mulher que quando morre, deixa para os seus escravizados, em duas gerações, tudo que tinha. É uma coisa tão simples, me emociona muito, porque quando Dona Geralda morre, ela simplesmente morre.” O pai está enterrado na igreja que ela mandou construir, mas Geralda não. O motivo? Dona Geralda não se casou.
A mais contemporânea da pesquisa é Marly Cardoso, conhecida por quase todos os paratienses – sem exagero. Foi vereadora durante duas décadas, primeira presidenta da Câmara Municipal e a primeira candidata a prefeita nos anos de 1990. “O primeiro edital da Câmara é a Marly quem está envolvida”, destacou Melo. Para os mais jovens, que a reconhecem pelas ruas, ela é lembrada por anunciar os números no Bingo do Divino, além de ser dona do bordão mais conhecido no Show de Calouros: “Espetáculo”.
Susana Estrada Requeixo, mãe de Maria Jácome de Melo, integra mais recentemente às análises. Palla e Melo que, inclusive, buscarão mais registros em Portugal em 2024, falam sobre a representatividade feminina na atualidade paratiense: “A representação ela existe, mas em sua parte, sem personalidade. Quando tem, ela é tachada de loucura, de desnecessária, exagero. Atualmente as identidades já vêm pré-moldadas. A gente precisa de mais Pagus.”
Serviço
Onde: Memorial do Paço – Dr. Irênio de Araújo Marques Filho
Endereço: Rua Dr. Samuel Costa, Centro Histórico
Quando: Segunda à sexta-feira, das 9h às 17h
Agendamento escolar e grupos através do formulário disponível no perfil @memorialdolegislativopty no Instagram