Um raio de luz incidiu sobre o metal polido de um revólver naquele dia desconhecido de agosto de 1942, em algum ponto de Volta Redonda. O ângulo de incidência do raio, coincidentemente, o refletiu diretamente para os olhos ativos de um negro corpulento que estava em um palanque. Rapidamente ele concluiu que um homem com chapéu de feltro de onde vinha o reflexo estava sacando um revólver e que o alvo era a principal figura que se encontrava no palanque: Getúlio Vargas, presidente da República.
O tiro ecoou depois da bala ter saído do cano do revólver, em direção a Vargas. Mas, antes mesmo que o som chegasse ao palanque, aquele homem atento saltou como um corisco à frente do presidente e, usando o ombro como escudo, levou o tiro que poderia ter matado Getúlio e mudado toda a história que hoje conhecemos.
O nome do salvador de Vargas era Gregório Fortunato, seu guarda-costas. O tiro o feriu, mas não o matou. Nascido em São Borja, no Rio Grande do Sul, Fortunato até então era tratado apenas pelo apelido de Nego. Mas, por seu ato heroico em Volta Redonda, ganhou do próprio Getúlio um novo apelido: Anjo Negro.
Mais do que um apelido, Anjo Negro foi uma espécie de título conquistado em Volta Redonda. Rendeu a Gregório Fortunato uma posição inédita e privilegiada na República: ele passaria a ser o guardião de Getúlio Vargas. Quase ninguém tinha acesso ao presidente sem antes passar pelo Anjo Negro.
Esta história, tão pouco conhecida no Brasil, seria determinante para o futuro. Em agosto de 1954 uma ação atribuída ao comando do Anjo Negro – que foi o atentado contra Carlos Lacerda – abriria uma crise na República e levaria Getúlio Vargas ao ato final de suicidar-se com um tiro no peito.
Por uma ação do Anjo Negro, Getúlio sobreviveu a um tiro; por outra ação do mesmo personagem, Getúlio atirou em si mesmo.
Doze anos separaram os dois eventos que mudariam para sempre a História do Brasil.
O ‘Anjo da Fidelidade’
O episódio de Volta Redonda é tão pouco conhecido quanto a própria vida e mesmo as causas da morte de Gregório Fortunato. Tanto que não se sabe o dia exato do atentado. Era um momento em que outros assuntos dominavam a pauta: a CSN começava a ser construída do nada e o Brasil preparava sua entrada na II Guerra Mundial.
Na verdade um dos raros livros que se aprofundou na história de Gregório Fortunato foi “O Anjo da Fidelidade – A História Sincera de Gregório Fortunato”, lançado em 2000 pelo já falecido jornalista e escritor José Loureiro. No livro, Loureiro disseca a história do Anjo Negro.
Fortunato era filho de um escravo alforriado, tinha cerca de 2 metros de altura e foi criado em São Borja, no Rio Grande do Sul, à sombra dos irmãos Vargas, em especial Benjamim Vargas – irmão mais novo de Getúlio – também conhecido por Beijo.
Em 1937, Beijo montou uma Guarda Presidencial de homens de sua confiança depois que opositores integralistas tentaram invadir o Palácio da Guanabara para atacar Getúlio Vargas. Os guarda-costas não eram funcionários do governo: eram pagos por “doações” de empresas que eram depositadas na conta de “Beijo”.
O principal nome da Guarda Presidencial era, claro, Gregório Fortunato, cujo poder crescia a cada dia. Empresários de todo o país rendiam favores e reverências ao Anjo Negro, sabendo que ele era via de acesso fácil não só a favores do governo quanto ao próprio presidente.
No segundo governo de Vargas – quando a ditadura já havia sido abolida – o presidente encontrou pela frente um inimigo antigo, porém agora mais mortal: o político e jornalista Carlos Lacerda, dono do jornal Tribuna da Imprensa.
A oposição de Lacerda a Getúlio começou no Estado Novo, quando este acabou renunciando em 1945, após uma ditadura de 15 anos. Assim que Vargas voltou ao poder, eleito em 1951, encontrou Carlos Lacerda ainda mais forte e mais combativo.
Em 1954, a cúpula no entorno de Vargas teria decidido dar um fim literal a Carlos Lacerda, segundo os historiadores. Era a hora de alguém se encarregar do trabalho sujo. Este alguém era o Anjo Negro.
O ‘Corvo’ que veio de Vassouras
Carlos Lacerda tinha um apelido pouco carinhoso dado pelos seus adversários getulistas: o “Corvo”. Apelido lançado pelo jornalista Samuel Wainer, dono do jornal “Última Hora” e aliado de Getúlio Vargas. Lacerda não se incomodou com o apelido. Na verdade o encampou e usou a figura do corvo em uma de suas campanhas.
Neste ponto, mais um personagem se liga à região Sul Fluminense: Lacerda é natural de Vassouras. Seu pai, Maurício de Lacerda, foi quatro vezes prefeito de Vassouras e era membro do Partido Comunista Brasileiro( PCB). Seu avô, Sebastião de Lacerda, foi ministro do Supremo Tribunal Federal e também era de Vassouras – cidade que tem inclusive um distrito que leva o seu nome.
A exemplo do pai, Carlos Lacerda começou no Partido Comunista Brasileiro. Era um revolucionário. Devemos a ele a existência da memória do líder negro Manoel Congo, que comandou uma rebelião de escravos em Vassouras no passado e hoje possui um memorial na cidade. Manoel Congo, por sua rebelião, acabou sendo sentenciado à morte pela forca em Vassouras.
Provavelmente a história de Manoel Congo e seu quilombo teriam se perdido se o jovem Carlos Lacerda não tivesse escrito, sob o pseudônimo de “Marcos”, um livreto retratando o líder da rebelião dos escravos.
Em 1939 renunciou ao comunismo e deu uma virada radical, tornando-se um dos principais líderes da direita no Brasil. A partir de então dedicou-se especialmente a infernizar a vida do seu maior adversário político: Getúlio Vargas.
Era uma guerra entre dois grandes gênios da política e dois grandes oradores. Em 1954 se tornara quase impossível a sobrevivência política de ambos no mesmo espaço e por tanto tempo. Um deles teria que morrer. Como nenhum dos dois morria politicamente, a solução era o extermínio físico. O Anjo Negro determinou que a morte de Carlos Lacerda estava agendada: dia 1º de agosto de 1954.
Local: Barra Mansa.
Plano: matar o ‘Corvo’ em Barra Mansa
Os documentos históricos mostram que Gregório Fortunato, o Anjo Negro, planejou a morte de Carlos Lacerda. Segundo o próprio Gregório, a mando de civis e militares que cercavam Getúlio.
O atentado a Carlos Lacerda ocorreria em Barra Mansa, no dia 1º de agosto de 1954.
Fortunato chamou para operacionalizar o atentado um homem da sua confiança, que ele próprio colocou na guarda pessoal do presidente: Climério Euribes de Almeida.
Climério buscava um pistoleiro. Um amigo, José Antônio Soares, indicou aquele que seria o assassino: Alcino João do Nascimento.
A coisa já começava errado.
Alcino, como pistoleiro, era uma fraude. Na verdade era um marceneiro que fazia biscates e havia sido meses antes contratado por José Antônio Soares, que era seu conhecido, para matar um sujeito que dava em cima da mulher dele. Alcino pegou o serviço por 5 mil cruzeiros. No Carnaval matou o cara. Mas, trapalhão, matou o sujeito errado.
Apesar disso, Climério o contratou.
Em 11 de julho de 1954, Climério e Soares levaram Alcino a Nova Iguaçu (até para que ele não matasse de novo a pessoa errada). Carlos Lacerda fazia um comício naquela cidade. Alcino conheceu o “Corvo”. Recebeu de Soares um revólver Smith & Wesson calibre 45 (que era de uso exclusivo da Forças Armadas). A próxima parada seria em Barra Mansa, 1º de agosto.
Faltava o motorista. Climério contratou um taxista amigo seu que trabalhava próximo ao Palácio do Catete, Nelson Raimundo de Souza. Um taxista sem experiência em crimes do gênero. Ele daria fuga a Alcino.
Estava óbvio que alguma coisa ia dar errado.
Climério, Alcino e Nelson saíram do Rio de Janeiro às 17 horas com destino a Barra Mansa. Faltando apenas cinco quilômetros para chegar na cidade – pimba! – o carro de Nelson enguiçou.
Chamaram um reboque e um táxi. Chegaram já no final do comício de Lacerda, mas não havia carro para a fuga.
Pernoitaram em Barra Mansa e, no dia seguinte, com o carro consertado, voltaram para o Rio de Janeiro.
Mas não desistiram da empreitada: decidiram que matariam Carlos Lacerda logo em seguida, no dia 4 de agosto, em um comício no Rio de Janeiro.
Claro que também tinha tudo para dar errado.
O fim do ‘Nego” e do ‘Anjo Negro’
O dia 4 de agosto era a data em que Carlos Lacerda faria comício no Colégio São José, na Tijuca. Climério e Alcino chegaram no local planejado para o crime. Não achavam o taxista Nelson. Por alguma razão se desencontraram. Quando Nelson chegou já eram 23 horas e não tinha mais ninguém no local.
Para não perder a viagem decidiram ir à casa de Carlos Lacerda, em Copacabana. Pararam na esquina da Rua Tonelero.
Lacerda chegava com o filho e o major Rubem Vaz, da Aeronáutica. Já era a madrugada de 5 de agosto. Alcino, que já havia matado um cara errado, fez de novo: atingiu Lacerda na perna, mas atingiu mortalmente o major Rubem Vaz.
A Aeronáutica não ia deixar barato. Abriu sua própria investigação.
Não foi difícil achar todo mundo: o taxista Nelson foi logo capturado, já que na fuga usou o seu taxi com a placa exposta e devidamente anotada por testemunhas.
Logo chegaram aos demais envolvidos. Todos foram presos.
E chegaram ao Anjo Negro Gregório Fortunato. Também foi preso.
O cerco se fechava em torno do presidente Getúlio Vargas. O alto escalão do seu governo – e talvez até seu irmão Benjamim – estariam envolvidos no atentado.
Getúlio cairia, mas cairia atirando. Contra o próprio peito.
Em 24 de agosto de 1954 – há exatos 65 anos – Getúlio cometia o suicídio que mudaria o rumo da História do Brasil.
A comoção da sua morte certamente evitou que as investigações prosseguissem e pegassem a raia graúda.
Gregório Fortunato foi condenado a 25 anos de prisão. Em 26 de outubro de 1962 foi assassinado na prisão. Por um suposto desafeto, na versão oficial. Por coincidência desapareceram todas as anotações que ele fez enquanto esteve preso.
Na verdade, até hoje há várias teorias sobre os episódios envolvendo o caso da Rua Tonelero.
Como personagem da História, o Anjo Negro, nascido em Volta Redonda, encerrou aí sua participação.
Como filho de escravo alforriado, nascido em São Borja, o homem Gregório Fortunato talvez não soubesse que, apesar de todo o poder que conquistou, quando a coisa pegasse iam por tudo na conta do Nego.
Aurélio Paiva | [email protected]
18 comments
Excelente. Muitas coisas que eu não sabia. E olha que esse assunto é muito comentado, inclusive virou filme.
Se nasceu em volta redonda não presta.
Feito você!!!! Idiota…
tivemos o prazer de entramos na história ,parabéns,belo texto.
Excelente! A riqueza dos detalhes é impressionante. Parabéns, Aurélio Paiva!
Se alguém quiser saber o caráter de um homem, dê poder a ele.
Antes de dar um poder maior a um homem, experimente-o dando um poder menor.
Nooossaaaa!!!! E daí?
Onde estava sua mulher??? E daí….
Parabéns Aurélio pela excelente matéria, eu também não sabia desse atentado aqui em Volta Redonda, pena que meu pai um Getulista ferrenho não está entre nós, ele iria saber deste ocorrido aqui na cidade.
O passado no presente Bolsonaro,com teu anjo negro,é a Globo de Carlos Lacerda! O corvo..
Parabéns Sr. Aurélio todo jornal deveria ter um conteúdo como esse. Com riqueza de detalhes e conhecimento histórico.
Morreria sem saber desse atentado à Vargas em Volta Redonda, sabia desse segurança pouco comentado. Realmente ele mudou a história sim, salvando Getúlio dessa ação.
Parabéns Aurélio que matéria
Meus parabéns Aurélio, Bravo! Pelo resgate de uma parte da história política brasileira esquecida e melhor dizendo desconhecida para muitos até hoje, grande pesquisa jornalística para ser utilizada por estudantes e para ser guardada
Excelente aula de fatos e acontecimentos em nossa região que poucos sabiam, eu mesmo não deste atentado contra Getúlio.
Parabéns!
Pois É :
Belo texto uma aula de história
Porém faltou dizer que Lacerda o Corvo, sempre foi lacaio dos poderosos, invejoso, e sua língua ferina maldita pôs fim a maior figura da política brasileira.
Tanto fez que foi cassado pela ditadura militar em 64, morrendo no ostracismo.
Este é o destino dos fracos moralmente, dos ressentidos e oportunistas .
Qualquer semelhança com a política atual não é mera coincidência.
Atualmente tem tanto corvo que nem dá pra contar.
Como sempre, excepcional!!!
A sabedoria do Aurélio vem do Oriente!!!
Belo texto. Parabéns.
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